Notas clássicas: um mapa para descobrir a história e o significado por trás da música clássica
Quem sou eu e do que se trata esta newsletter?
Um mapa?
Cerca de dez anos atrás tive uma conversa com Aquilles Bezerra, amigo guitarrista de Natal, minha cidade natal. Ele me falou que gostaria de conhecer mais de música clássica e perguntou se eu tinha algum guia ou lista de obras com texto explicativo. Navegar em toda a história da música clássica é uma tarefa hercúlea — tarefa que toda a extensão de uma vida humana não consegue dar cabo. E, por mais que possamos sempre ouvir o que quer que quisermos, ter algo que nos ajude a compreender o que estamos ouvindo pode tornar a experiência muito mais prazerosa.
A música clássica é muito mais do que um gênero. Quando falamos ‘música clássica’ costumamos ter em mente algo que orbita o que se convencionou chamar de ‘música séria’1 — termo popularizado pelo compositor Gluck (1714-1787) para se referir à música erudita em contraposição à ópera italiana popular da época. Quando falamos de música clássica, estamos falando de um período de mais de 500 anos — se levarmos em conta a tradição ocidental da música erudita apenas. Então o termo é muito mais uma categoria do que um gênero. Iremos explorar a música desde o Renascimento (séculos XV e XVI), até o período Moderno, no século XX. Cada período possui suas peculiaridades, gêneros e dialoga com toda a história que o precede. Não vou entrar agora muito fundo na conversa de gêneros musicais versus períodos versus música popular mas à medida que explorarmos mais e mais obras essa distinção se tornará autoevidente.
A conversa que tive com Aquilles ficou na minha cabeça durante todos esses anos e ensaiei por diversas vezes construir um mapa para ajudar amantes da música clássica a navegar tanto no contexto histórico quando nas gravações de referência. Somente agora parei para começar a trabalhar nesta tarefa. Espero que seja de valor para você que me lê.
Tá, mas quem sou eu?
Sou Gabriel Galvão, um melômano, curioso e aficcionado por música — não apenas a clássica. Estudei piano clássico durante cerca de 16 anos da minha vida, embora hoje em dia esteja em idas e vindas com o instrumento devido às obrigações profissionais. Sou engenheiro de software de formação (Ciências da Computação, UFRN), tenho 40 anos e além de pianista também toco guitarra, sou um viciado em línguas (inglês, espanhol, francês e alemão, além, claro, do português) e já estudei um pouco de fotografia. Também sou ciclista amador e já me aventurei em lutheria, tendo construído uma guitarra. No entanto, não tenho nenhuma credencial com que possa carimbar o que falo aqui. Essa newsletter é de melômano para melômano. Tudo que eu falar aqui está passível de correção.
Um mapa!
Seguiremos duas trilhas distintas. Em uma delas iremos percorrer a música de forma cronológica. Começaremos do Renascimento e seguiremos até o Modernismo. Na outra trilha falaremos de peças soltas, sem nenhuma regra. A escolha das obras livres seguirá pura e simplesmente o meu humor. A ideia é a de não vincular o nosso mapa a uma abordagem apenas cronológica. Quando comecei a ler sobre música “a sério” nos idos de 1999 o primeiro livro que li foi Livro de Ouro da História da Música, de Otto Maria Carpeaux. A abordagem era cronológica mesmo e era o que tinha para hoje. O que me permitiu explorar a música de uma forma não-linear foi a coleção da Deutsche Grammophon, que foi vendida nas bancas creio que no ano 2000. Nem todo mundo gosta de música mais antiga (e aqui não falo nem de música medieval mas de música renascentista e barroca) e privá-los das publicações até chegarmos ao período predileto deste ou daquele não faz sentido. Além do mais, mesmo sem gostar de certo período — e todos nós temos nossas preferências — é útil conhecer e ser capaz de entender o que torna a música de um período diferente da música de outro.
Consonância e Dissonância
Exploraremos a música levando em conta a visão que afirma que a música progride de menos dissonância para mais dissonância com o passar do tempo. Essa visão não é a única que existe mas temos alguns gigantes que fundamentam esta ideia:
Arnold Schoenberg, compositor austríaco e teórico da música, afirma, em Funções Estruturais da Harmonia, que a ‘dissolução da tonalidade’ na música era um resultado natural do desenvolvimento histórico da harmonia.
Rameau, compositor francês e teórico da música do século XVIII, que acreditava que a música progride da monodia ao contraponto e da homofonia à polifonia.
Esse ponto de vista, em particular, está associado de maneira muito próxima também a outra ideia: a de as vanguardas artísticas estão sempre surgindo para desafiar algum pilar do status quo.
Se pensarmos em música medieval, imediatamente vem à mente o Canto Gregoriano. Nele, temos uma música monofônica, com apenas uma linha melódica (apenas uma voz, dizemos, mesmo se cantada por diversos cantores), que é completamente consonante visto que todos os cantores entoam a mesma nota musical. A música do renascimento, vista deste ponto de vista, já é intrigantemente mais rica, visto que adota a polifonia, em contraste à monofonia, com diversas vozes em contraponto. Isso vai ser levado, mais tarde, às últimas consequências, pela música Barroca especialmente em seu maior expoente, Johann Sebastian Bach. Saímos, então, de uma única linha melódica para inúmeras linhas melódicas distintas. Desenvolvimentos semelhantes acontecem nas viradas da música Barroca para a Clássica, da Clássica para o Romantismo e do Romantismo para a música Moderna. Mas não vamos nos estender neste assunto aqui em nossa primeira conversa.
O que importa é que eu vou tentar convencer você de que a música evoluiu de uma menor complexidade harmônica para uma maior complexidade harmônica. Que saiu de pequenos grupos vocais cantando a uma só voz à Sinfonia dos Mil (a Oitava Sinfonia de Mahler) e ao Acorde Tristão.
O território!
Tentaremos criar juntos um mapa mas o mapa não é o território. Mantenha isso em mente e se termos técnicos, livros, estudo, vídeos e análises começarem a atrapalhar o quanto você gosta de música então pare e apenas ouça. Está tudo lá, no fim. Toda a História vai comprimida junto com o som.
Monteverdi - Lamento della Ninfa
Iniciamos no Renascimento, mas no finzinho já. A obra que trago hoje é do compositor Claudio Monteverdi (1567-1643), compositor italiano que se situa bem na transição da música do renascimento à do período barroco. Lamento della Ninfa é uma obra vocal que faz parte do oitavo livro de madrigais de Monteverdi, publicado em 1638 e é muito provavelmente sua peça mais famosa.
Madrigal
Um madrigal é um tipo de música vocal secular (em contraposição à música litúrgica/sacra) tipicamente escrita para pequenos grupos vocais de quatro a seis vozes. Seus textos em geral falam de temas como amor, natureza e a condição humana e a música é bastante expressiva, utilizando-se de polifonia para dar textura a certos elementos do texto. Os madrigais surgiram na Itália mas também se tornaram populares na Inglaterra e França, além de outros países.
Lamento della Ninfa
Antes de tudo: escute.
Ou se preferir ler uma tradução (em inglês) do texto:
A peça foi composta para 4 vozes e um basso continuo (uma forma de acompanhamento muito comum na música dos períodos renascentista e barroco onde o compositor apenas marca a linha de baixo na partitura e o floreio do acompanhamento fica todo a cargo do intérprete).
O baixo da peça reitera durante a maior parte do tempo apenas 4 notas, que descem em grau conjunto, lá, sol, fá, mi, dando a sensação de continuidade e momento.
O texto é baseado em um poema de Ottavio Rinuccini e conta a história de uma ninfa que foi abandonada pelo amante e que então canta seu lamento.
As vozes masculinas fazem as vezes de uma espécie de narrador da cena. Já li que seriam anjos observando a Ninfa e também que seriam pastores que a encontraram e acolheram em seu sofrimento.
Monteverdi deixa na partitura a instrução de que a soprano deveria ter liberdade para alterar ligeiramente o ritmo da melodia para acentuar determinadas partes como quisesse enquanto que os cantores deveriam cantar a tempo de forma estrita.
Outras interpretações:
E essa super modernosa interpretação popular, veja só, é de gerar discussão entre o pessoal mais caxias (mas eu gostei, vá lá).
Claudio Monteverdi
Monteverdi, como falei anteriormente, viveu de 1567 a 1643. Nasceu em Cremona, na Itália e começou sua carreira como coralista, ainda criança, na Catedral de Cremona. Estudou depois música com Marc'Antonio Ingegneri e começou a trabalhar como músico e compositor em Mantua no começo dos anos 1590. Inicialmente compôs principalmente madrigais, gênero especialmente popular na Itália do fim do período do Renascimento mas rapidamente ganhou notoriedade pelo seu uso inovador da harmonia e da expressividade no uso da polifonia.
Em 1607 ele compôs ‘Orfeo’, que é considerada uma das primeiras óperas da história da música Ocidental. Compôs outras óperas e trabalhos vocais, incluindo-se ‘L’incoronazione di Poppea’, ‘Il ritorno d’Ulisse in patria’ (duas óperas que ainda são executadas correntemente) e também é reconhecido por contribuições à música sacra, com, por exemplo, ‘Vespro della Beata Vergine’, conhecido também como Vespers of 1610.
Obra Livre - Edvard Grieg - Concerto para Piano
Quando comecei a ouvir música “a sério”, lembro que fui ao sebo “Letra e Música”, lá em Natal, e comprei o seguinte álbum:
A capa não era exatamente essa mas era essa a gravação! John Ogdon com regência de Sir John Barbirolli.
Esses dois concertos para piano em geral vão juntos em gravações pelo fato dos dois serem em lá menor (e serem do período romântico).
Não encontrei a gravação exata mas encontrei esta aqui com John Ogdon:
Segundo Movimento aqui (sublime!).
Terceiro movimento aqui.
Pessoalmente, não gosto dessa definição por achar que ela contribui muito para a associação da música erudita com o velho de terno sisudo que pede silêncio no teatro e essa imagem não ajuda em nada a resolver um velho e enorme problema: a formação de público.