"Armide", de Jean-Baptiste Lully, e o barroco francês (I)
Introdução
Na última edição falamos de Monteverdi e L’Orfeo. Monteverdi é um compositor da vanguarda do Renascimento que ora está associado ao Renascimento, ora ao Barroco. A partir de agora iremos fazer a transição completa ao período Barroco em nossa exploração.
Barroco versus Renascimento
A música do Renascimento se caracteriza por ter um estilo mais equilibrado e contido, com foco na clareza do material. Apesar de já termos forte uso de polifonia durante o período do Renascimento, no período Barroco a polifonia chegará ao provável limite superior já testemunhado pela humanidade — como veremos em Bach, mais à frente.
No Barroco, entretanto, temos um estilo mais ornamentado, com ênfase maior no drama, emoção e no contraste. A característica da ornamentação é facilmente verificada fora da música, como por exemplo na Arquitetura, nos trabalhos de Gian Lorenzo Bernini (italiano, escultor e arquiteto) e Christopher Wren (inglês, arquiteto, geômetra, astrônomo físico e matemático).
Na pintura, artistas como Rembrandt, Caravaggio e Rubens desenvolveram um novo estilo caracterizado por iluminação dramática (com forte contraste entre o claro e o escuro), expressão intensa das emoções e foco em formas humanas.
Na literatura, há o surgimento do romance barroco (em contraste ao romance medieval) e o desenvolvimento de novos gêneros como o Ensaio (Michel de Montaigne, ‘Essais’, por exemplo) e a Memória (Jean-Jacques Rousseau, ‘Confessions’).
Na ciência também há enormes avanços durante o período, com o trabalho de Isaac Newton revolucionando tanto a Física (Mecânica e Astronomia) quanto a Matemática (Cálculo).
O Barroco na Música
Na música, é comum que se divida o período em diferentes estilos separados por país, com foco especial nos Barrocos alemão, inglês, francês e italiano. Essas divisões não são absolutas, é claro, já que há enorme sobreposição no estilo de diversos compositores. No entanto, é útil como método de classificação.
O período germânico é associado com a música de Johann Sebastian Bach e seus contemporâneos e é caracterizado pelo contraponto, harmonia complexa e melodias expressivas.
O inglês, por sua vez, é associado com a música de compositores como Henry Purcell e George Friedrich Handel e se caracteriza pelo lirismo melódico, uso de música coral e pela incorporação de elementos da música folclórica.
O período francês, foco desta edição, é associado principalmente a Jean-Baptiste Lully e François Couperin e está fortemente vinculado ao uso de dança, ornamentação elaborada e ênfase em música vocal.
O período italiano, finalmente, é associado com a música de compositores como Antonio Vivaldi e Claudio Monteverdi (que já vimos que mora na fronteira do Renascimento e do Barroco) e se caracteriza pelo virtuosismo instrumental e pelo uso da Ópera como forma principal de expressão musical.
Novamente, essas definições são limitantes e há diversas evidências de que a música de cada país exerceu e sofreu influência mutuamente. Lully, por exemplo, é um dos responsáveis pela criação da forma musical conhecida como Abertura francesa1 (French Overture), que se caracteriza pelo uso de uma seção inicial lenta e grave que é seguida por uma seção rápida e com o uso de fuga (uma forma de composição contrapontística — mais detalhes em breve!) seguida enfim por uma seção lenta. Bach utilizou esta forma, por exemplo, em sua ‘Abertura à Francesa’ (BWV 8312) e na abertura de seu Magnificat (BWV 243).
Um parêntese: Música Instrumental no Barroco
O leitor mais atento perceberá que o BWV 831, acima, é uma obra instrumental. E que a instrumentação é mais complexa e a execução, virtuosística. Vale, então, esse pequeno parêntese.
A música instrumental existiu, claro, também durante o período do Renascimento. No entanto, considera-se que a música instrumental floresceu durante o período Barroco. Uma das explicações se calca no fato de que o período barroco viu grande desenvolvimento técnico na construção de instrumentos, o que expandiu sua capacidade expressiva. O instrumentos barrocos já eram superiores (e iriam continuar sendo refinados rapidamente até o fim do período clássico). O avô do piano, Pianoforte, por exemplo, surge no final do período barroco já na transição para o classicismo (Bach viveu o surgimento do piano mas toda sua obra para teclado foi composta para órgão e cravo).
Também temos o surgimento do virtuose no período barroco (embora não seja uma figura tão crítica quanto durante o período Romântico). Os instrumentistas, com o rápido desenvolvimento da técnica instrumental, ajudaram os compositores a expandir os limites expressivos de seus instrumentos. Por sua vez, os compositores escreveram extensamente obras para instrumentos específicos como o violino, cravo e órgão. Se pensarmos na 1. simbiose de instrumentistas e 2. música cada vez mais difícil e intrincada (com o perdão de minha licença poética no uso desses termos), encontramos na intercessão dois grandes compositores — J.S. Bach e Vivaldi.
Jean-Baptiste Lully
Lully (1632-1687) foi um compositor, instrumentista e bailarino francês considerado como uma das figuras mais importantes no desenvolvimento da música barroca francesa. Nasceu em Florença mas se mudou para a França jovem e tornou-se cidadão francês. Trabalhou para a corte do Rei Luis XIV como compositor, onde foi responsável pela música e pelas produções teatrais.
Filho de um pobre moleiro, aprendeu a tocar violino sozinho, com a ajuda de um padre franciscano que o ajudou com os fundamentos.
Aos 14 anos de idade foi levado a Paris por Roger de Loraine, Duque do Guise, para ensinar italiano à sua sobrinha , Mademoiselle de Montpensier, filha do Duque de Orleães e prima de Luís XIV.
Pouco depois de integrar a orquestra da casa real em 1652, foi designado compositor de música instrumental do palácio, dirigindo Les Ving-Quatre Violons du Roi (Os 24 Violinos do Rei, orquestra de câmara da corte francesa que existiu de 1626 a 1761).
Mais tarde, recebeu alvará para fundar a Academie Royale de Musique, que posteriormente viria a ser a Grande Opera (a Ópera de Paris).
Ele é conhecido por suas contribuições à ópera francesa, que ajudou a desenvolver e popularizar, criando uma marca distinta que unia dança, música vocal e instrumental com ênfase no espetáculo e na pompa.
Sua música é elegante, sofisticada e refinada e se caracteriza pelo uso copioso de dança — diz-se que foi quem levou bailarinas ao palco das óperas e introduziu o Minueto (gênero de dança de par em tempo ternário). Como curiosidade, diz-se que foi o primeiro a utilizar uma batuta.
Sua obra é ampla e é difícil escolher uma só obra. Mas adiante falaremos de Armide, considerada sua obra mais importante.
Armide, LWV 71
Ópera com première em 1686, Armide é uma tragédia baseada em um poema épico pelo poeta italiano Torquato Tasso. Conta a história de uma feiticeira chamada Armide que se apaixona com um Cavaleiro cristão, Renaud, que fez prisioneiro.
Em estilo especialmente característico de Lully, conta com escrita vocal extremamente elaborada, seu uso de dança e sua orquestração rica. O trecho escolhido (ver abaixo) deixa patente a escrita vocal elaborada, com uma melodia rica e que faz uso de elementos que soam modernos até a nossos ouvidos contemporâneos, como o uso de cromatismo e da rica polifonia que surge detrás da cortina entre os versos cantados. O trecho é uma Passacaglia (ou passacale, ou passacalha). Em Armide, a Passacaglia é utilizada como um tipo de interlúdio entre duas cenas vocais.
Mas o que é uma Passacaglia?
A palavra passacaglia vem do espanhol ‘pasacalle’. É originalmente uma forma de dança que foi popular na Espanha e na Itália no século XVII e era comumente executada em ruas ou praças. À medida que o tempo passou, foi se cristalizando como forma musical utilizada em música instrumental, principalmente na música barroca.
Tem como característica uma linha de baixo repetida constantemente, enquanto a melodia principal efetua variações sobre esse tema. Pode-se entender como Tema e variações. Em geral os temas possuem tempo ternário.
Em 3:41 começa o primeiro verso. Fais attention!
Les plaisirs ont choisi pour asile
ce séjour agréable et tranquille,
que ces lieux sont charmants
pour les heureux amants!
Os prazeres escolheram como asilo
Esta estadia agradável e tranquila,
E que lugares encantadores
para os felizes amantes
Quando falamos de ornamentação, o que queremos dizer é exatamente o que acontece quando, no primeiro verso, o cantor floreia com um trinado a letra i da palavra asile, por exemplo, assim como no i de tranquille, na sílaba ants, de charmants e em eux em heureux. Vejam que as outras vogais não recebem tratamento semelhante e são cantadas de forma até bastante linear — o que não ocorrerá mais à frente, em obras vocais de períodos posteriores.
A melodia é repetida novamente com pequenas alterações e um pouco mais de ornamentação. A cada repetição a melodia vai se tornando levemente mais complexa e interessante. O coro reitera sempre a estrofe.
C'est l'amour qui retient dans ses chaînes
mille oiseaux qu'en nos bois nuit et jour on entend.
Si l'amour ne causait que des peines,
les oiseaux amoureux ne chanteraient pas tant.
É o amor que retém sob suas correntes,
E mil pássaros que ouvimos cantar noite e dia em nossos bosques
E se o amor só causasse pesar
Os pássaros apaixonados não cantariam tanto assim.
Por fim, temos.
Jeunes cœurs, tout vous est favorable,
profitez d'un bonheur peu durable.
Dans l'hiver de nos ans l'Amour ne règne plus,
les beaux jours que l'on perd sont pour jamais perdus.
Jovens corações, tudo lhes é favorável,
Aproveitem de uma felicidade que dura pouco
No inverno de nossa existência o amor não reina mais
E os belos dias que perdemos são perdidos para sempre
Há um grande interlúdio orquestral, com rica exploração do tema. E por fim retomamos com o cantor em 11:26. Percebam como há muito mais ornamentação, com quase todas as vogais sendo ornamentadas e outras sendo levemente estendidas.
A obra inteira é fantástica e recomendo a seguinte gravação, com Philippe Herreweghe (sim, eu tive que checar a ortografia umas 300 vezes).
A Passacaglia de Herreweghe é notavelmente mais lenta. E creio que ressalta, desta forma, ainda mais as ornamentações, por dar mais tempo ao cantor em cada vogal.
Obra Livre
A obra livre é instrumental, para dar contraste ao grande número de obras vocais. Sugiro ao leitor mais curioso pesquisar sobre essa peça. Seu caráter é enormemente diferente de tudo que ouvimos até o corrente momento.
E um excelente vídeo sobre a peça.
O contraste aqui é com relação à Abertura italiana, onde as seções são Rápida, Lenta e Rápida.
É comum, em música clássica, vermos junto ao nome de obras um código de letras e números. Estes códigos estão relacionados a formas de catalogação utilizadas por estudiosos de cada compositor. Bach, por exemplo, possui obras sempre catalogadas com BWV (Bach-Werke-Verzeichnis, ou Catálogo de Obras de Bach), sistema criado por Wolfgang Schmieder e publicado pela primeira vez em 1950.